Em evento organizado pelo Brazil Energy Transition Group, pesquisador europeu focou as chances criadas pela transição, enquanto cientista brasileiro detalhou os avanços da produção de etanol de segunda geração no País.
O professor Andre Faaij, da Universidade de Groningen (Países Baixos), afirmou em evento ocorrido na sexta-feira (17/01), no Fapesp Shell Research Centre for Gas Innovation (RCGI), em São Paulo, que o recente “green deal”, engendrado pela União Europeia (UE) e endossado há poucos dias pelo Parlamento Europeu, tem como meta transformar a Europa no primeiro continente neutro em emissões do planeta. Segundo ele, o continente deve mobilizar 1 trilhão de Euros para financiar a transição, o que representa oportunidades para muitos setores da economia. O evento foi organizado pelo Brazil Energy Transition Group – BET, coordenado pela jovem pesquisadora Drielli Peyerl.
“Não é mais conversa, ou debate. É investimento. As últimas estimativas em nível europeu dão conta de que mobilizaremos 1 trilhão de euros para realizar esses planos nos próximos anos. É algo grande e está ficando cada vez melhor para muitos players – o setor energético claramente, mas também a indústria, o transporte, o setor automobilístico. Tudo será virado de cabeça para baixo. Entender como funciona essa transição energética, como pode ser gerenciada, a um custo que se possa pagar, de maneira sustentável e aceitável, é muito importante”, disse Faaij, que também atua na TNO, uma instituição de pesquisa independente com escritórios em nove países.
No último dia 15/01, o Parlamento Europeu posicionou-se sobre a próxima lei climática da UE, solicitando que ela tenha metas de redução de emissões mais ambiciosas para 2030: 55% em 2030 em comparação a 1990, em vez de “pelo menos 50% em direção a 55%”, conforme proposto pela Comissão.
Quase ao mesmo tempo, um documento do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça) – 21 e 24/01 -, admitiu pela primeira vez que os maiores riscos econômicos globais estão ligados ao clima. Em uma carta aberta, o fundador e diretor-executivo do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, recomenda que todas as empresas participantes do encontro se comprometam com a definição de metas para zerar suas emissões líquidas de gases do efeito estufa até 2050, ou mesmo antes.
Transição e custos – Na palestra denominada “Towards zero GHG emission economies: how can the necessary energy system transition be realized over time?”, o professor Faaij apresentou alguns modelos do próprio IPCC e os custos do carbono evitado que o Painel vem estimando ao longo do tempo, e defende que esses custos são altos porque os modelos usados pelo grupo de cientistas têm baixa granularidade, ou seja: baixo nível de detalhamento. “São macro modelos, com input limitado de detalhes, o que é compreensível, porque são modelos globais. Pela conta do IPCC, o custo estaria na casa de USD 135 a USD 5.500 por tonelada de carbono evitado em 2030.”
Segundo ele, a transição energética significa muitas coisas em diferentes partes do mundo. “Na África subsaariana e no sul da Ásia, por exemplo, ainda há pouquíssimas emissões ligadas à produção de energia. Ali, as emissões são de uso da terra, é agricultura de subsistência, eles estão sobrevivendo. Mas vão querer alterar seu padrão de vida, e atingir o padrão da Índia, da China, dos Estados Unidos. Isso é um driver poderoso, que aumenta a demanda por energia. Portanto, a transição desses países – estamos aqui falando de algumas bilhões de pessoas em contexto de grande crescimento populacional – e como suas economias se transformarão nas próximas décadas são elementos críticos.”
Por esses motivos, para Faaij, não há receita para a transição energética. “Ela tem de ser feita sob medida para cada lugar.” O pesquisador chamou a atenção para a baixa popularidade de soluções como a Carbon Capture and Storage (CCS) e o uso de biomassa na Europa, e também salientou o potencial da biomassa na oferta mundial de energia.
“Podemos triplicar o peso da biomassa na matriz mundial, incluindo os biocombustíveis, sem contar os químicos que podem ser gerados a partir de biomassa. Acontece que há grupos de opinião mais radical, que querem a transição sem CCS, e sem intensificação da produção de biomassa. Em um cenário futuro com alto nível de uso de biomassa e de soluções como CCS, levando-se em conta também o uso de BECCS, que gera emissões negativas, ou seja, em um cenário de emissões negativas, haveria um pequeno espaço para o uso de fósseis, e esse fóssil seria, no caso, o gás natural, que é o menos emissor deles.”
Etanol – Na segunda parte do evento, o professor Marcos Buckeridge, diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT), discorreu sobre o etanol, especialmente o de segunda geração, os desafios e as oportunidades do Brasil nesse segmento.
“O açúcar, no mercado, concorre com o etanol. O etanol de primeira geração é produzido a partir do melaço da cana de açúcar. Também é possível extrair polímeros da cana de açúcar e usá-los em biorrefinarias, o que é muito interessante. E, ainda, podemos produzir eletricidade a partir da queima do bagaço da cana. O maior problema neste caso é que o bagaço não está preparado para ser queimado, ele tem muito oxigênio. Então, é preciso desenhar geneticamente o cultivo da cana, para obter produtos específicos para objetivos específicos. É nisso que estamos trabalhando.”
Buckdrige explica que o etanol de segunda geração é produzido a partir do bagaço da cana, das folhas do canavial e da palha que fica no campo. “Neste caso, usamos basicamente as paredes celulares desses resíduos. Mas é muito difícil quebrá-las para obter os açúcares livres que irão originar o etanol 2G.”
Ele explica que o processo começa com uma fase de pré-tratamento, depois da qual é preciso hidrolisar o material e, para tanto, são necessárias enzimas. “Existe uma única empresa no mundo que produz comercialmente essas enzimas, uma empresa dinamarquesa. Mas estamos trabalhando nisso. Já caracterizamos mais de uma centena de enzimas, e descobrimos que alguns fungos também fazem essa função. Agora, pretendemos usar uma enzima comercial e ir adicionando, a ela, outras que atuem na parede celular desses resíduos que pretendemos aproveitar. Queremos saber se conseguimos enriquecer esses coquetéis enzimáticos comerciais usando enzimas da própria cana, que atuam nos domínios da parede celular”, resume.
Uma outra maneira de facilitar esse trabalho, segundo o pesquisador, seria modificando as paredes celulares desses resíduos usando genética molecular, tornando as paredes celulares mais propícias à hidrólise. “Neste caso, talvez pudéssemos fazer um pré-tratamento biológico em vez de químico ou físico, o que seria melhor em termos de custos energéticos.”
O grupo do INCT – Bioetanol criou um software para analisar as sequências de genes da parece celular da cana, e até 2019 já havia catalogado 1.600 genes. “O software pode ser usado por pesquisadores do mundo todo, assim como nosso banco de dados, contendo a base de dados. É mais difícil sequenciar o genoma da cana de açúcar do que o genoma humano”, revela Buckdrige.
Mais CO2, mais etanol – O cientista relata a realização de um experimento com a cana, colocando-a em câmeras com o teto aberto e simulando condições futuras: aumento de CO2 na atmosfera, aumento de temperatura, mais água, menos água. “Sabemos já a respeito de alguns genes que serão ligados ou desligados conforme o CO2 da atmosfera aumenta. O que sabemos é que quando a cana de açúcar é colocada em um ambiente rico em CO2, ela produz cerca de 30% mais açúcares, e iria produzir mais etanol no futuro – contanto que a temperatura e a oferta de água estejam normais. Depende da modelagem. Já sabemos que os genes relacionados a esse fenômeno estão conectados à fotossíntese.”
Por fim, ele afirmou que outros materiais podem ser usados para a obtenção do etanol 2G, como o sorgo e a lentilha d’água. “O sorgo é muito similar à cana em vários aspectos. O genoma é muito similar e o comportamento fisiológico também. Já a lentilha d’água é mais fácil de hidrolisar do que a cana-de-açúcar, sendo também um tipo muito interessante de biomassa, pois serve para limpar água e cresce em qualquer lugar do mundo, é facilmente adaptável. Também se pode usar resíduos de soja.”
Cerca de 20 pessoas estiveram presentes ao evento, entre elas o diretor científico do RCGI, Julio Meneghini, e a professora Suani Coelho, expert na área de biogás e coordenadora de um dos projetos do Centro. “Esta é a primeira atividade realizada pelo BET e eu gostaria de agradecer aos participantes do grupo de ajudaram na organização deste evento e a todos os presentes”, encerrou a coordenadora do BET, Drielli Peyerl.